Crack à beira da praia da Barra, em área turística, ao lado do QG do Exército: para ‘fidelizar’ usuários, tráfico vai a pontos de consumo vender droga

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Traficantes estão ofertando crack e outras drogas para além do entorno das bocas de fumo, segundo levantamento feito pelas secretarias municipais de Ordem Pública e de Assistência Social entregue ao Governo do RJ.

O trabalho identificou 15 pontos fora de comunidades no Centro e nas zonas Norte e Sul do Rio de Janeiro onde isso tem acontecido — os locais não foram detalhados para não atrapalhar as investigações.

“Ouso dizer que a presença do traficante fideliza o usuário naquele espaço”, disse a secretária de Assistência Social, Martha Rocha. “Passamos para o governo fotografias, indicativos dos locais, descrições das pessoas [que vendem], horários das vendas.”

g1 rodou pelo Rio e flagrou “microcracolândias” na frente da praia, em acessos a pontos turísticos e boêmios e ao lado do poder público.

🗺️Alguns desses lugares:

  • Praça do Ó, na orla da Barra da Tijuca;
  • Avenida Mem de Sá, a poucos metros dos Arcos da Lapa e da Escadaria Selarón;
  • Praça Cristiano Ottoni, colado ao Comando Militar do Leste, o QG do Exército.

Você vai ver nesta reportagem:

  1. Onde o crack está?
  2. Um giro pelas microcracolândias
  3. Por que aumentou?
  4. O que causou a pulverização?
  5. E quem resolve o problema?
Consumo de crack na Praça do Ó, na frente do mar da Praia da Barra da Tijuca — Foto: Reprodução/g1

Consumo de crack na Praça do Ó, na frente do mar da Praia da Barra da Tijuca — Foto: Reprodução/g1

🎯Onde o crack está

A cidade chegou a ter 150 áreas mapeadas em diferentes bairros, segundo um censo feito em 2018 — este é o número mais recente divulgado, apesar de ter havido uma rodada em 2022.

A Prefeitura do Rio diz que esse número aumentou, em dados colhidos no ano passado e que serão informados em 2025.

“A gente percebe [o crescimento das cracolândias] pelas nossas abordagens, e o Censo de Rua de 2024 deve trazer essa confirmação”, disse o secretário de Ordem Pública do Rio, Brenno Carnevale — o documento ainda não tem previsão de publicação.

A pedido do g1, o Disque Denúncia identificou 77 “cenas de consumo” em 35 bairros, a partir de reclamações da população só nos últimos meses. A equipe de reportagem foi a 11 desses lugares.

Segundo o levantamento do Disque Denúncia, Centro, Jacarepaguá, Bangu e Copacabana têm mais pontos de venda e consumo da droga.

Em 2022, o Censo de População em Situação de Rua da Prefeitura do Rio – a mesma publicação que não informou quantas cracolândias existiam na cidade – apontou que 6.778 pessoas que viviam nesta condição eram dependentes químicos — muitos deles usuários de crack.

📹Um giro pelas microcracolândias

Em Botafogo, moradores deixaram um recado em um muro. Cansados da presença de usuários, escreveram: “É proibido fumar aqui. Respeite nossas famílias. Pare de fumar. Peça ajuda.”

Esse muro fica na Rua São Clemente, a pouco mais de 100 metros do Palácio da Cidade, uma das sedes administrativas do município.

Segundo a presidente da Associação de Moradores de Botafogo, Regina Chiaradia, a situação no bairro “está fora de controle”.

Usuários de crack estão espalhados em pequenos grupos nas ruas Real GrandezaMena BarretoVoluntários da Pátriada Matriz e das Palmeiras, além da Praça Compositor Mauro Duarte.

“Os moradores reclamam, a gente chama a polícia, mas quando os PMs chegam, eles já saíram — porque são andarilhos. Compram o crack em ruas transversais ao Morro Santa Marta. Na minha visão, esse problema está no Rio inteiro. É preciso que façam algo. Mas essa questão não é de polícia. É caso de saúde pública. Cadê os CAPs [Centros de Atenção Psicossocial]? Os órgãos públicos precisam dar uma solução para esse problema.”

A 19 quilômetros dali, na Praça do Ó, na Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade, em meio a colchões puídos e lixo — mas a menos de 100 metros do mar —, homens se aglomeram no entorno das pistas de skate para consumir crack. Cansados de acionar a polícia e não ter resultado, moradores passaram a filmar a microcracolândia e divulgar as cenas nas redes sociais.

A professora aposentada Maria da Conceição Gonçalves Melo conta que os moradores estão receosos.

“Andamos sempre olhando para o lado para ver se tem alguém, porque está muito difícil. Muito usuário de crack nos cantinhos da praça. De noite, então…”, declarou.

A terapeuta Mariana Veiga, que frequenta a praça com o filho, afirma que sente insegura quando não tem muita gente.

“Eles ficam ali, usando, tem brigas. É um ambiente inseguro. O meu filho está com 8 anos e tem outras crianças menores. Eu não gosto de ficar aqui sozinha aqui”, destacou.

Do outro lado da cidade, em Vila Isabel, Zona Norte, uma aposentada de 71 anos diz que um usuário de drogas tentou entrar em sua casa há algumas semanas. A microcracolândia fica nas imediações da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

“Há 35 anos eu moro em um apartamento, na Rua Jorge Rudge. Eu vivi uma experiência medonha há alguns dias. Por volta das 3h, o alarme do prédio disparou. Levantei correndo e olhei pela janela, porque na sequência ouvi uma pancada. Um rapaz havia caído, após tentar entrar aqui em casa. A partir desse dia eu só durmo com cadeado na janela e um pedaço de madeira escorando a abertura.”

Inscrição em muro na Rua São Clemente, em Botafogo — Foto: Rafael Nascimento/g1

Inscrição em muro na Rua São Clemente, em Botafogo — Foto: Rafael Nascimento/g1

📈Por que aumentou?

O secretário de Ordem Pública do Rio, Brenno Carnevale, afirmou que o aumento do número de cenas de uso de crack é reflexo “da falta de uma investigação e de repressão policial”.

Carnevale cita o crescente volume de apreensões de armas brancas, réplicas de armas de fogo e materiais para drogas desde 2023.

Apreensões em cracolândias

AnoArmas brancasRéplicas de armasMateriais para drogas
20233.568192.049
20245.202973.209
2025*1.89116830
Fonte: Seop | *até 2 de abril

“O nosso trabalho foi tentar levar esse problema para uma formalização, com elementos concretos da venda de drogas em locais próximos de atuações da prefeitura. Nesses locais tivemos grande incidência de abordagens e de apreensões. E isso pode acontecer de alguma medida por conta de uma facilidade ou ausência de fiscalização e repressão policial no comércio ilegal de drogas, principalmente de crack”, declarou Carnevale.

Alguns dos exemplos dados pelo secretário estão na Mangueira, e em Manguinhos, na Zona Norte, e nas imediações dos morros Dona Marta, em Botafogo, e do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana.

“Por óbvio, são áreas conflagradas. A prefeitura não vai se arvorar a reprimir o tráfico de drogas porque não é sua atribuição” afirmou o secretário.

“Temos as ‘esticas’, aqueles ajuntamentos de usuários que sabem que podem ir e vir com crack livremente. Mas são áreas quase contíguas às comunidades. Por isso, demandamos as instâncias policiais”, explicou.

Para a secretária municipal de Assistência Social, Martha Rocha, “a presença do traficante potencializa a permanência do usuário de crack”.

“Colocamos para o secretário [de Segurança, Victor Santos] a necessidade de uma atuação conjunta. “Pela Polícia Civil, para fazer uma investigação mais detalhada; pela PM, para coibir o tráfico de drogas no policiamento preventivo”, descreveu.

“Precisamos mitigar danos, assumir responsabilidades e buscar resultados. A questão da droga é questão de crime. A prefeitura não pode sair por aí investigando, fazendo incursão policial e prendendo. Por isso a gente precisa de ajuda”, emendou Carnevale.

Já o secretário municipal de Saúde do Rio, o médico sanitarista Daniel Soranz, destacou que a venda de crack ocorre próximo a delegacias e batalhões, indicando uma certa conivência dos órgãos de segurança.

“Alguns desses pontos são do lado da sede da Polícia Civil, por exemplo, na Rua da Relação com a Rua do Lavradio. Fica quase na esquina da Subsecretaria de Inteligência da Polícia Civil, que é a instituição responsável por essa investigação. Além disso, a gente tem muitos desses pontos de venda de crack em locais próximos de escolas, de delegacias ou de batalhões. Sendo que há de fato uma certa conivência em relação a esse crime por diversos órgãos de segurança”, disse o secretário.

g1 pediu os locais exatos próximos de escolas, de delegacias ou de batalhões — mas a pasta não enviou os endereços para comprovar a fala de Soranz.

Usuários de crack na Praça do Ó, na Barra da Tijuca — Foto: Betinho Casas Novas/g1

Usuários de crack na Praça do Ó, na Barra da Tijuca — Foto: Betinho Casas Novas/g1

🚔Abordagem repressiva e pulverização

Frederico Policarpo, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Psicoativos e Cultura da UFF, fala que na maioria das vezes a abordagem é inadequada. Segundo Policarpo, a repressão pelas forças de segurança levou à pulverização das cracolândias.

Onde antes havia até 500 pessoas aglomeradas em uma área relativamente pequena consumindo drogas, hoje se veem dezenas de grupos com menos de 10 usuários em diversos pontos — daí o termo microcracolândia.

“A gente tem uma política de segurança no estado e na cidade que enfatiza muito só a repressão e esquece a secundária, que é a inteligência. É preciso desarticular essas redes de vendas das drogas, em especial o crack”, disse.

“A internação compulsória tem um protocolo de funcionamento que tem que ser com critérios médicos. E, na maioria dos casos, é inadequado”, emendou.

Policarpo acredita que o ponto de partida para combater o problema é conhecer o perfil dos dependentes químicos e garantir a eles acesso a direitos básicos.

“É criar um vínculo com essas pessoas para elas começarem a se tratar, via negociação de diminuição de uso.”

✅E quem resolve o problema?

O governador Cláudio Castro (PL) preferiu não gravar entrevista, mas afirmou ao g1 que a Prefeitura do Rio “deveria seguir o exemplo da Prefeitura de São Paulo” sobre como tratar usuários de drogas. Em janeiro, por exemplo, a gestão Ricardo Nunes ergueu um muro de 2,5 metros de altura na área da Cracolândia, na região da Santa Ifigênia, perto da Estação da Luz, a fim de confinar os usuários.

O secretário estadual de Segurança do RJ, o delegado federal Victor dos Santos, declarou que a responsabilidade sobre as cracolândias é de todos. “Mas o usuário de drogas não é um problema de polícia.”

“Entendemos que essa responsabilidade [para resolver o problema das cracolândias] tem que ser de todos nós. Estado e município juntos para combater esse mal que acaba mexendo com a rotina da cidade. Agora, a gente tem que entender que o usuário de drogas não é um problema de polícia. A legislação antidrogas protege a saúde pública. Quem diz que maconha, cocaína e crack causam dependência física ou psíquica — e por isso é uma droga proibida — é o Ministério da Saúde, não é a polícia. Claro que a polícia tem o dever de combater o tráfico de drogas. Mas, nesse caso, estamos falando do usuário que está na condição de vulnerabilidade social e de saúde, que isso sim, requer uma ação multidisciplinar”, explicou.

“O estado pode colaborar? Claro, porque muitas vezes o usuário é violento, pode estar portando uma arma, e a segurança pública pode ajudar o município nessa questão. Mas entendemos que, primariamente, isso deve ser tratado pela questão de saúde e ordenamento público. Estamos tentando criar uma fórmula para atuar em conjunto. Principalmente na Zona Sul. A gente pode dar segurança à ação da prefeitura. A gente tem condições de auxiliar a prefeitura. Ela entra com ações sociais e ordenamento urbano e ajudamos com a segurança para que os agentes sociais não sofram qualquer tipo de dano por alguém que estiver em surto”, continuou.

A PM destacou que o cenário dos dependentes químicos nas ruas “envolve um contexto complexo que exige a colaboração de diferentes entes do poder público“. “No primeiro trimestre de 2025, a Polícia Militar apreendeu mais de 2.360 quilos de crack, um aumento de 26,5% em relação ao mesmo período do ano anterior, totalizando mais de 8.900 quilos de entorpecentes diversos apreendidos.”

“Durante o policiamento ostensivo, as equipes policiais realizam abordagens e revistas, conduzindo cidadãos com pendências judiciais às delegacias. Nos primeiros três meses de 2025, mais de 9.900 pessoas foram conduzidas pela Polícia Militar a delegacias no RJ.”

Soranz lembra que o crack “destrói famílias, destrói lares”. “Uma pessoa que utiliza crack, ela vive 36 anos a menos do que a população em geral. Um usuário vive só até 41 anos, ante 77 anos da expectativa de vida da população da cidade do Rio de Janeiro. É uma situação muito grave. Hoje qualquer pessoa consegue acessar o crack a céu aberto. A Prefeitura do Rio de Janeiro levou a Polícia Civil e pediu uma investigação estruturada nesse processo. E até o momento a gente ainda não tem retorno em relação a isso”, prosseguiu.

A Secretaria Municipal de Saúde diz que em 2024 foram 800 internações compulsórias e 3 mil involuntárias em 2024 no Rio.

A Prefeitura do Rio de Janeiro lançou o Programa Seguir em Frente em dezembro de 2023 e disse ter beneficiado 4.680 pessoas em situação de rua. “Destas, 1.754 receberam apoio para ressocialização no mercado de trabalho e 42,30% já têm moradia fixa. O programa oferece tratamento psicossocial e assistência social”, listou.

Além disso, segundo o órgão, o Programa Consultório na Rua realizou 56.062 atendimentos em 2024, com 15 equipes multidisciplinares atuando na cidade. O município possui 10 centros especializados em álcool e drogas, e todos os 40 CAPs da rede atendem pacientes com uso abusivo de substâncias.

Procurada, a Polícia Civil não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Usuários de crack na Lapa — Foto: Betinho Casas Novas/g1

Usuários de crack na Lapa — Foto: Betinho Casas Novas/g1

fonte: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/04/04/crack-a-beira-da-praia-em-area-turistica-ao-lado-do-qg-do-exercito-para-fidelizar-usuarios-trafico-vai-a-pontos-de-consumo-vender-droga.ghtml

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